Bem, já que me lancei na senda do comentário de filmes, primeiro com "Fahrenheit 9/11" e depois com "Super Size Me", resolvi continuar com mais um filme, mas desta vez afastando-me um pouco da análise das deturpações políticas actuais, se bem que é bem verdade que podem ser (e já foram) estabelecidos paralelismos entre "The Matrix" e a obra/ideologia de Karl Marx. Porém, neste caso não venho propriamente analisar essa vertente, e sim os aspectos epistemológicos e éticos presentes no filme e que são questionados partindo das acções da personagem Cypher, mas que englobam uma análise que compreende os três filmes, ao invés de se cingir à informação veiculada no primeiro.
Cypher e os problemas do filme Matrix
Desde logo, o filme apresenta uma ilusão que contrasta com uma realidade, uma forma de controlo que se opõe a uma libertação. Em suma, o mal e o bem. De facto, e estabelecendo o paralelismo com outras fontes que fornecem o background para a história do filme, é essa ideia de liberdade que é defendida: os humanos precisam de se libertar da ilusão e da opressão, para poderem ser verdadeiramente livres e poderem saber o que é real, o que é não-ilusório; o mesmo segue para A alegoria da Caverna de Platão e outras influências filosóficas. O filme pretende assim despertar a assistência e levá-la a questionar sobre aquilo que a rodeia. Porque, afinal de contas, não existe maneira de sabermos se estamos, de facto, numa simulação do género Matrix! Qualquer pessoa que queira provar logicamente e sem sombra de dúvida que não estamos todos enfiados em tanques e a nadar numa versão sintética do líquido amniótico vai ser certamente acometida de fortes dores de cabeça, porque um dos pontos mais brilhantes do filme é o facto de não oferecer qualquer escapatória e ser (por muito difícil que seja de acreditar) verosímil, palavra que aplico num sentido estrito e não lato (a verosimilhança de que falo está mais enquadrada no conceito de plausibilidade, mas, de alguma forma, ultrapassa-o); o mesmo se aplica a Morpheus, ele pura e simplesmente não pode saber se está ou não no mundo real mesmo depois de ter saído da Matrix (apesar de nos ser dito que esta crença é, afinal de contas, correcta, ele não o pode saber porque não tem a omnisciência do espectador). Eu não creio estar numa matriz computorizada, mas não posso provar que não estou. Por outro lado, não posso provar que estou, mesmo se cresse nessa possibilidade. Faz-me lembrar um pouco os debates científico-teológicos sobre Deus(es)... O que não deixa de ser engraçado é que Descartes (outra das bases ideológicas do filme) afasta a sua dúvida sobre se ele ou mesmo o Mundo existem com a existência de Deus, que, repito, se torna difícil de comprovar! É claro que ressalvo desta verosimilhança algumas pequenas (e daí talvez não tão pequenas) incongruências de hardware e software que existem no filme – ninguém é perfeito... Portanto, muito tendenciosamente, mas sem qualquer espanto, o espectador é conduzido a tomar o partido dos “bons” e a rejeitar sumariamente o ponto de vista dos “maus”. O que leva a que, quando Cypher se senta à mesa com o Agente Smith a discutir os termos da traição dos seus amigos de longa data, o espectador se sente enjoado, perguntado talvez “Como é possível?! Ele quer voltar?! Estará louco?!” Ora, esta questão, que já parece arrumada (em virtude da fé exagerada nos juízos empíricos que muitas vezes fazemos), tem, na verdade, três vertentes: a vertente ética, a vertente hedonística e a vertente ideológica que se pode extrair da posição de Cypher, muito embora o próprio não partilhe dela (ou pelo menos o filme não o demonstra).
Ética na posição de Cypher
Este ponto não deixa grandes dúvidas. Qualquer pessoa (no sentido filosófico de “pessoa”, como alguém que não vive só para si, que tem e pratica a empatia e a praxis) tremerá de nojo ao verificar que Cypher vende os seus amigos muito simplesmente porque está farto de viver fora da Matrix (e de comer aquela mistela sintética que servem na Nebuchadnezzar: olhem como se delicia com o bife!). Esta acção é completamente anti-ética, já que, concordando ou não com as opiniões dos seus amigos sobre a Matrix, não tem o direito de sacrificá-los e menosprezá-los, privando-os do direito a exercer a sua liberdade e a seguir um plano ético e vivencial próprio. Cyoher está apenas a obedecer aos seus próprios interesses, sem tomar em consideração o que quer que seja. Eticamente, a atitude dele é condenável e essa é a principal razão pela qual os espectadores negam terminantemente tudo aquilo que Cypher diz. Julgam-no mesmo louco. Não ponho a sua insanidade mental em causa, mas existem outros aspectos que merecem ser considerados e que não o podem ser se nos limitarmos a ignorar o que Cypher diz.
Hedonismo na posição de Cypher
A posição de Cypher é claramente hedonística: apesar de saber que o bife não é real, delicia-se com ele, quase parece querer encará-lo como real (e notoriamente considera-o melhor que a já referida mistela sintética do mundo real). Mais tarde, ao falar com Trinity quando esta ainda está na Matrix e ele está na realidade, ele defende que a Matrix pode ser mais real do que o mundo real. Isto demonstra sem dúvida que, para Cypher, a realidade se prende com a satisfação posterior: quanto mais satisfação se obtiver, maior é o grau de realismo (ou de realidade, neste caso) – hedonismo, portanto.
Claramente ele preocupa-se apenas consigo próprio uma vez mais e a sua posição egoística leva-o a este ponto de vista que certamente não será do agrado (intelectual) dos espectadores: a realidade, assim o cremos, tem uma existência independente da finalidade para a qual é utilizada e não depende do grau de satisfação do sujeito.
Então, estamos exactamente no mesmo sítio onde estávamos antes de ter começado a minha análise! Condenamos a sua falta de ética e de princípios humanos e condenamos o seu desejo de prazer que se conjuga com o sacrifício de tudo a isso e a uma concepção adulterada do que é real.
Mas, na verdade, resta a análise ideológica que Cypher não partilha mas que se pode retirar da forma como ele age.
A ideologia que se pode extrapolar
Tal como eu disse no início, a Matrix é considerada condenável porque nos priva da realidade e do saber real e porque nos priva da nossa liberdade como agentes de acção. E agora eu pergunto: será isto realmente assim?
Na maioria dos ensaios de filosofia que li sobre o Matrix (e não foram poucos) e em que se fala de problemas epistemológicos, existe uma preocupação central, a par da de Platão e Descartes: aquilo que percepcionamos pode não ser real, o que implica que estamos iludidos sobre o mundo e sobre o que nos rodeia: somos incapazes de conhecimento de facto se nos basearmos apenas nos sentido (e até mesmo a Ciência seria criticada por Descartes, que gostava de criticar tudo – absolutamente tudo), excepção feita aos elementos matemáticos e geométricos, imutáveis e sempre verdadeiros, quem em Descartes quer em Platão.
Na Matrix podemos ver claramente (e daí talvez não) como eles estão enganados sobre a realidade: passam a vida mergulhados num líquido viscoso com o sistema nervoso central e periférico ligado a um super-computador que lhes dá a aparência de terem experiências e de viverem. Existem apenas “sinais eléctricos interpretados” por um cérebro, como diz Morpheus a Neo no Construct. Assim, e segundo muitos filósofos que se debruçaram sobre este problema, existe um erro total na concepção da realidade, e que, ainda por cima, é massificado. Interessantemente, considero que esta afirmação é verdadeira em dois sentidos mas fundamente falsa em outros dois, um deles o mais importanto de todos os quatro.
Na Matrix podemos ver claramente (e daí talvez não) como eles estão enganados sobre a realidade: passam a vida mergulhados num líquido viscoso com o sistema nervoso central e periférico ligado a um super-computador que lhes dá a aparência de terem experiências e de viverem. Existem apenas "sinais eléctricos interpretados" por um cérebro, como diz Morpheus a Neo no Construct. Assim, e segundo muitos filósofos que se debruçaram sobre este problema, existe um erro total na concepção da realidade, e que, ainda por cima é massificado. Interessantemente, considero que esta afirmação é verdadeira em dois sentidos mas fundamentalmente falsa noutros dois, um deles o mais importante de todos os quatro.
0 primeiro sentido em que esta afirmação é verdadeira é o mais óbvio: percepcionam prédios, carros, etc... quando na verdade estão dentro de um mundo cibernético onde toda a realidade não passa de combinações de zeros e uns. Portanto, nao existe a adequatio res et intellectus, já que a res (código binário) não é percepcionada como tal, os sentidos dos encarcerados não os põem em contacto com a realidade que os rodeia (a Realidade Virtual (RV), entenda-se). Porém, algo se insurge contra isto, tomando a afirmação não tão verdadeira quanto isso... Nós (presumindo que estamos em contacto com a Realidade Real (RR)) também não percepcionamos os átomos e moléculas como átomos e moléculas. Percepcionamos as coisas como gestalts, conjuntos mais significativos do que a soma das suas partes. Assim, os habitantes da Matrix podem não percepcionar o código binário mas percepcionam as gestalts, as formas resultantes e ao mesmo tempo excedentes dessas combinações de códigos binários (para que se possa perceber melhor, chamo a atenção para a visão de Neo da Matrix depois da segunda ressurreição; ele vê apenas linhas de código informático, vê apenas os elementos constituintes básicos e não percepciona - directamente, porque ele percebe esses constituintes e agrega-os mas não os percepciona agregados da forma convencional - as gestalts daMatrix). Assim, apesar de não saberem a verdade sobre o seu mundo de RV (o que é incontestável), percepcionam as gestalts da RV. Estão equivocados em relação à realidade da Realidade que percepcionam, mas percepcionam essa mesma Realidade, estando portanto em contacto com ela.
0 segundo sentido prende-se com a RR (o mundo que existe fisicamente fora da Matrix) e que é a parte mais importante. Estando eles encarcerados dentro da Matrix, é impossível que percepcionem a RR. Até aí é verdadeiro. Porém, o que se costuma dizer é que, porque não percepcionam a RR, as suas crenças sobre a RR estão erradas porque são baseadas nas experiências da RV e que as crencas sobre a RV estão tambem completamente equivocadas. Ora, isto já não é bem assim! Na verdade, e por estranho que pareça, é por percepcionarem a RV como sendo RR que eles possuem conhecimentos correctos (na medida do possível) sobre a RR. Não se pode dizer que existem erros massificados quando, na verdade, tudo o que eles sabem se aplica à RR! Se um físico quântico saísse da Matrix, não precisava de aprender tudo de novo, nem de esquecer o que tinha aprendido, porque tudo se aplicaria na perfeição. Isto porque a RV é uma simulação (quase) perfeita da RR, permitindo aos sujeitos ter a experiência da RR na RV. É claro que em termos históricos e de realidade física (ao invés da realidade do funcionamento inerente à natureza) existiriam erros crassos, o que não permite dizer que todos os conhecimentos dos ligados à Matrix estão equivocados. Como acabei de dizer, o subjacente (as leis naturais) e muitas outras coisas (Filosofia, Sociologia, etc...) estão completamente correctas. Aliás, vou mais longe: com tanta guerra em Zion, será que eles possuem tanto conhecimento como os cientistas da Matrix?
Em suma: ao percepcionarem a RV, conhecem a RR, estando os seus conhecimentos certos em relação à RR e incorrectos em relação à natureza das percepções da RV. Existem duas realidades, percepcionam e estão em contacto com uma, pensando que é a outra. Porém, tudo o que sabem da RR também se aplica à RV, simplesmente mudam as partes que compõem aquilo que se percepciona como uma mesma gestalt. Na RV, a gestalt ''carro" é composta por bits mas é mais do que os próprios bits; na RR, a gestalt "carro" é composta por partículas sub-atómicas mas é mais do que as próprias partículas. Uma mesma gestalt, com duas origens. Ambas se comportarão da mesma forma em ambas as realidades!
Agora que já foi visto o problema da realidade, resta ainda o problema da liberdade.
Segundo é opinião corrente, os seres humanos, porque estao aprisionados (física e mentalmente) na Matrix não são livres. Portanto, precisam de se libertar da Matrix para poderem ser livres, para poderem ser agentes das suas acções. Na minha análise actual deixarei de fora os princípios deterministas que surgem no filme, ja que o assunto do Destino (e consequente liberdade ou não do sujeito) é abordado de duas formas contraditórias: por um lado existe um futuro que, até certo ponto está escrito e que leva a que certos acontecimentos tenham lugar "inexoravelmente" (como diz o Arquitecto); mas, por outro lado, "o problema é a escolha", como Neo e a Oráculo dizem muitas vezes, o que obriga a que exista um agente livre que escolha e que impede a existência de um Destino já traçado.
Ater-me-ei à análise da frase destacada. Ora, é claro e inequívoco que existe uma forma de controlo, uma forma de prisão, já que os humanos não escolheram ser ou não inseridos na Matrix, simplesmente foram-no de forma arbitrária. Neste aspecto, os humanos perdem alguma da sua liberdade. Mas isto não implica que os sujeitos não tenham liberdade! Isto não implica que não exista livre-arbítrio e responsabilidade a par das acções dos sujeitos. Muito simplesmente, eles não têm liberdade dentro da RR. Se analisarmos a RV, vemos que afinal a liberdade ainda existe!
Os sujeitos dentro da Matrix fazem o que querem, quando querem e como querem, com respeito às limitações também existentes na RR e portanto irrelevantes para o caso! Se as máquinas Ihes dissessem ou os obrigassem a fazer isto ou aquilo, admitir-se-ia que não existia liberdade, porém, o caso não é esse: dentro da Matrix, os indivíduos são agentes, têm liberdade, são responsáveis pelas suas acções e podem (ou não) agir de acordo com os princípios que partilham. Exactamente da mesma forma que na RR. Não obstante isto, existem algumas coisas que realmente limitam a liberdade dos inseridos na Matrix e que não existem na RR: quando um Agente se apodera do corpo de alguém e o utiliza, ou quando uma Era da Matrix chega ao fim e as máquinas fazem reset ao sistema, não permitindo o avanço natural da História. Fora estas excepções, todos os que estão dentro da Matrix são livres, livres segundo as regras da sua própria Realidade. É claro que existiria um grau muito maior de liberdade se Ihes fosse dado a escolher se queriam ou não estar na Matrix (que é como acaba o terceiro filme).
E se essa escolha estivesse disponível? Pessoalmente, quereria ficar dentro da Matrix, e nem pensaria terceira vez! No caso de uma Matrix benevolente (do género que se começa a formar no fim do terceiro filme), não existiria provavelmente a necessidade de Agentes, nem de andar a fazer reset ao programa. E, considerando o estado do planeta, viver-se-ia em liberdade e em realidade dentro da Matrix. Para além do mais, esta é uma ligação tecno-simbiótica que faz todo o sentido: as máquinas cuidam de nós e nós cuidamos delas. Qual é o problema? Acrescente-se a isto mais uma coisa: quem viu o DVD “Animatrix” pode constatar que a culpa da guerra foi dos humanos. Fomos nós que quisemos destruir as máquinas, e elas indulgenciaram muitos abusos da nossa parte! Elas, tendo necessidade da nossa bio-energia, puseram-nos dentro da Matrix. Mas, de certa forma, também precisamos delas! Zion funcionava à base de máquinas, como o conselheiro Hamman bem demonstra a Neo; entre umas e outras, prefiro ficar na segurança e no descanso da Matrix, que fornece muito mais do que a RR, a todos os níveis que se possa imaginar. Que importa que eu não controle o meu corpo? Só através do cérebro sei que tenho corpo, portanto, a partir do momento em que eu pense e possa controlar um corpo, mesmo que virtual, sou livre de agir. Mesmo a quem contrapõe que nós queremos efectivamente fazer as coisas e não só ter a experiência de as fazer (como Robert Nozik), eu respondo que isso é uma questao que não existe: eu só sei que tenho as experiências que tenho pela percepção e razão, ora, se tudo isso esté no que é passado para o avatar da Matrix, não existe diferença detectável entre percepcionar uma experiência de forma virtualmente completa (como na Matrix) e ter a mesma experiência na RR! Basta poder escolher para escolher não me rebelar contra o sistema! "0 problema é a escolha", de facto!
Porém, devo concluir dizendo que este ponto de vista se aplica apenas ao carácter prático da Matrix. Toda a ideia de libertação da ignorância a que o filme incita é perfeitamente justificada para nós, como metáfora.
Prometeu
P.S. - Para mais informações e muitas páginas de ensaios de filosofia, consultem "
What is the Matrix", site oficial do filme. Para além do mais, apreciaria quaisquer dúvidas/críticas sobre este ensaio ou tudo o relacionado, bem como sugestões sobre como o tornar um pouco mais acessível...